quarta-feira, 19 de agosto de 2009

"LIBERDADE"

Roteiro para filme de curta-metragem
de José Maria Neto

Copyright © 2009 by José Maria Neto
Todos os direitos reservados

Personagens:
ENFERMO
VIGIA
MOÇA
(ESPÍRITO) GUIA 01
(ESPÍRITO) GUIA 02
(ESPÍRITO) JOÃO
(ESPÍRITO) INÁCIO


Baseado em um argumento original

FADE IN:
# 1. CORREDOR DE HOSPITAL/INT./NOITE
Em um corredor de hospital três homens caminham sem serem vistos. O corredor está deserto. Eles estão indo para uma das alas da enfermaria. Ouve-se seus passos enquanto conversam.

GUIA 01
Eles vão cooperar?

JOÃO
A moça dormiu em oração. É uma boa candidata a trabalhos mais avançados.

GUIA 02
É uma grande cooperadora.

Chegam à enfermaria.

CORTA PARA:


# 2. ENFERMARIA DE HOSPITAL/INT./NOITE
Uma enfermaria com cerca de doze leitos, dispostos em duas fileiras com um corredor no meio. Ainda em off os homens passam por alguns leitos e param ao pé de um deles. Vê-se ao fundo um vigia dormindo sentando em um banco simples encostado na parede.
Aproximam-se da cabeceira da cama. Um senhor de cerca de 60 anos dorme placidamente. Seu rosto é suave, expressa tranqüilidade. Uma mão aparece em cena e aproxima-se lentamente da testa do enfermo, até tocá-la. Ele estremece. Solta um som de relaxamento.

FADE OUT RÁPIDO

Houve-se o som de caneta tinteiro riscando o papel enquanto em letras brancas é escrito no fundo preto: Liberdade.

FADE IN RÁPIDO

A imagem permanece focalizada no homem. Seu rosto está mudando. Passa pouco a pouco da fisionomia branda para uma seriedade enrugada, depois má. Então sorri cinicamente, com um lado da boca. Após um segundo, começa a resmungar.

ENFERMO
Resmunga sons ininteligíveis.

No fim da enfermaria, um jovem negro, uniformizado como vigia cochila encostado à parede. Ele acorda com os ruídos do enfermo, olha de rabo de olho. Não vê ninguém próximo à cama. Volta a cochilar, mas o enfermo ergue-se um pouco e continua a resmungar.

ENFERMO
Nego fujão. Nego fujão.

O vigia enruga a sobrancelha, desaprovando o comentário, imaginando se estaria se referindo a ele.

ENFERMO
Eu vou te achar nego fujão, nego safado eu sei que cê tá aqui. Hihihi vou te amarrar no tronco...

O vigia não agüenta a provocação. Se levanta e vai até a cama do enfermo. Dá-lhe um pequeno cutucão com o cassetete.

VIGIA
Vai dormir malandro. Se me deixar nervoso, vou deixar você bem calminho.

Balança o cassetete em sinal de ameaça. Volta a se sentar. O enfermo continua a resmungar palavras sem nexo com uma ou outra expressão compreensível.

ENFERMO
João... vingar... aprender... maldito...

Uma jovem de cerca de 20 anos, vestindo camisola hospitalar, deitada em outra maca, levanta-se e caminha até o leito do enfermo.

VIGIA
Tá vendo, imbecil? Acordou a moça. Se preocupa não moça, assim que ele melhorar vai voltar pro xadrez.

Ela não lhe dá ouvidos. Está de olhos fechados. Se aproxima placidamente do leito. O moribundo continua com suas ameaças.

ENFERMO
Se o patrão deixasse eu já tinha te matado seu nego safado. Seu olho de pedra não me engana. Eu sei que você não tem alma.

MOÇA
Todos os filhos de Deus são iguais, meu irmão.

VIGIA
Não perde seu tempo com esse vagabundo não moça. Você é muito bonitinha pra desperdiçar essa vozinha tão doce com esse traste. Ainda mais quando alguém interessante está por perto.

Surgindo do nada no meio do corredor, o vigia vê um homem alto, de vestes muito brancas caminhando rapidamente em sua direção. Assusta-se mas não tem tempo de reagir. O homem estende sua mão e toca a testa do vigia, que num choque vê-se paralisado. Ao olhar para o leito, o vigia vê então outros dois homens com vestes muito brancas aparecerem. Um está ao lado do enfermo e outro segurando o ombro da moça. Vê também um jovem de barba, muito sujo, usando chapéu e roupas antigas, sentado atrás do enfermo. O vigia suspira.

VIGIA
Meu Deus!

GUIA 01
Observa e aprende.

O jovem sentado atrás do enfermo está com as pernas para fora da cama. O enfermo está sentado para frente, com as pernas cruzadas sobre a cama. Ambos movem-se em sintonia, arqueando o corpo para frente e para trás de modo nervoso, levemente descontrolado. Este movimento se intensifica até beirar o descontrole, então os dois principiam a falar juntos.

JOVEM & ENFERMO
Eu vou te matar desgraçado. Escravo rebelde. Seu lugar é no tronco João. Infeliz sem alma.

Um dos homens de branco permanece atrás da moça, segurando em seu ombro. Ele concentra-se de olhos fechados, ao que ela dirige-se ao enfermo.

MOÇA
Acalma-te Inácio. Quanto tempo nesse desespero. O ódio te roubou muitos anos. Não vivemos mais sobre a égide triste da escravidão.

Inácio, o jovem vestido de farrapos assusta-se, como se conhecesse a identidade que falava por trás da voz. O senhor enfermo movimenta-se uma fração de segundo após Inácio, como num balé mal ensaiado, a não ser pela fala perfeitamente sincronizada.

INÁCIO & ENFERMO
Quem é você? O que quer comigo?

MOÇA
Estou perto de ti há muito tempo, Inácio, mas tu nunca se permitiu me ver.

INÁCIO & ENFERMO
Então me traga aquele nego fugido e poderei voltar pra fazenda.

MOÇA
Não há mais fazenda. Não há mais nada daquele tempo, só você.

INÁCIO & ENFERMO
Pare de desperdiçar meu tempo. Porque estou preso aqui? Cadê o safado do nego João? Que lugar é esse?

MOÇA
Mais importante que onde é quando, meu irmão. Tens vagado pelos desfiladeiros do ódio por dois séculos. Uma pessoa que lhe ama muito conseguiu uma graça do Pai, para interceder por ti. Através dos fluidos espessos da matéria abriremos teus olhos para a realidade que insistes em ignorar.

Revoltado, o capataz suplica para que o libertem.

INÁCIO & ENFERMO
Me libertem. Me libertem.

MOÇA
É o que viemos fazer.

O Guia 2, que acompanhava a cena próximo a Inácio impõe as duas mãos sobre sua testa. Concentra-se intensamente e leva Inácio a uma visão do passado, o momento dois séculos atrás quando ele matou o escravo João.

CORTA PARA


# 3. ZONA RURAL-MATA/EXT./DIA

O então escravo, João, corre desesperadamente em meio à mata que circunda uma antiga fazenda. O capataz Inácio corre em seu encalço. Ele vacila por um momento e cai. O capataz o alcança. João implora por sua vida. Inácio não dá tempo para que o escravo fale, se lança sobre ele e finca lhe a faca nas entranhas de forma definitiva. Inácio arregala os olhos comemorando a vitória bárbara.

FUNDE COM


# 4. ENFERMARIA DE HOSPITAL/INT./NOITE
O rosto vitorioso ensandecido de Inácio se funde a sua expressão de total terror ao recordar seu crime. Ele grita.

INÁCIO
Naaão.

No momento em que Inácio volta da lembrança e está gritando, o Guia 02 segura sua testa com força e a nuca do Enfermo. Em um movimento brusco empurra os dois em direção oposta, separando a ligação mental que os unia. O Enfermo cai no leito, estremecendo. Inácio cai de lado no leito.

INÁCIO
Não suporto mais essa lembrança. Essa maldição me persegue há décadas. Não consigo respirar. Não consigo esquecer.

João então retira a mão do ombro da moça, que parece ficar tonta e tem um pequeno tremor. Enquanto a moça começa a acordar, João se dirige a Inácio.

JOÃO
Por isso lhe trouxemos aqui.

Inácio entra em choque ao ver João, ao lado da moça que começa a retornar ao seu leito, confusa.

INÁCIO
É você, seu nego sujo. É você quem está fazendo isso comigo? Eu vou te matar.

JOÃO
Aqui não podes fazê-lo, capataz.

INÁCIO
Esperarei que nasças de novo para que eu te mate novamente.

JOÃO
Estás abrindo os olhos. Percebes que aquela vida acabou.

INÁCIO
Não. Não quero saber de suas artimanhas filho do demônio. Só quero vingança.

João ajoelha-se e oferece os dois braços unidos, mostrando que Inácio poderia algemá-los.

JOÃO
Tens me aqui.

Inácio arremete contra ele. João ergue os olhos bondosos e encara seu agressor. Perante a bondade do olhar, Inácio pára, e se joga no chão.

INÁCIO
Desgraçado! Teu olhar me fere!

JOÃO
O perdão não fere, Inácio.

INÁCIO
O teu me fere. Quero matar-te de novo.

JOÃO

Agiste conforme tua vontade, pobre capataz. Ainda assim, teu crime foi para mim uma oportunidade de redenção. A teia que prendia nossos destinos será extinta pelo perdão.

Ao dizer as últimas palavras João deixa escorrer uma discreta lágrima. Inácio está convulsionando encolhido no chão.

INÁCIO
Teu perdão me fere. Teu perdão me fere.

JOÃO
Agora, só de tu mesmo tens que obter perdão.

INÁCIO
Não agüento mais. Não agüento mais.

JOÃO
Recebeste a oportunidade de despertar através do auxílio destes dois irmãos na carne. Não retarde mais o retorno à realidade.

INÁCIO
Não agüento mais. Não agüento mais.

JOÃO
Podes iniciar o retorno dos caminhos do engano, mas somente as próprias pernas podem te levar.

INÁCIO
Ajuda-me anjo de Deus.

JOÃO
Não somos anjos, capataz. Lembre-se que sou apenas o João.

João e o guia 02 suspendem Inácio e o apóiam em seus ombros. Simultaneamente João acena com a cabeça para o Guia 01. Este começa a andar e ao ir retirando a mão da fronte do Vigia, ele pouco a pouco deixa de ver os homens que se afastam, até desaparecerem.


FADE OUT

Houve-se o som de caneta tinteiro riscando o papel enquanto em letras brancas é escrito no fundo preto: Fim.